
Paciente feminina, 12 anos, iniciou febre e vômitos em dezembro de 2021. Foi avaliada no serviço de emergência com quadro de palidez cutânea, sem visceromegalias ou adenopatia. Ao hemograma, apresentava leucopenia leve, anemia e trombocitose moderada-graves. Foi transferida para o IPPMG em jan/2022 para investigação pela hematologia. A avaliação de medula óssea revelou hiperplasia eritroide e diseritropoese intensas, hiperplasia megacaricocítica com micromegacariócitos e excesso de blastos. A Imunofenotipagem (IFT) demonstrou intensa displasia com características mieloproliferativas e aumento de blastos mieloides (16%). Apresentou cariótipo 46 XX, com duplicação da região cromossômica 2q36q37.3 em 95% das metáfases pela citogenética. O estudo molecular foi negativo para BCR:ABL1, e também para mutações em FLT3 tipo ITD, JAK2 V617 e no exon 9 de CAL-R; pesquisa de mutação em MPL em andamento. Seguiu em acompanhamento clínico, mantendo estabilidade clínica e laboratorial, com anemia moderada, trombocitose > 1.000.000 mm3 e percentual de blastos em sangue periférico < 20%. Em junho/22, evoluiu com aumento expressivo de blastos mieloides no sangue periférico (60%) e na medula óssea (50,7%). Novo estudo molecular foi negativo para RUNX1:RUNX1t1, CBFb:MyH1 e FIP1L1:PDGFRA, porém positivo para mutação FLT3-ITD. Foi iniciado tratamento para LMA de acordo com protocolo GELMAI.
DiscussãoEste caso contribui para a Discussão sobre Neoplasias Mielodisplásicas/Mieloproliferativas (SMD/NMP) na infância. A presença de trombocitose grave associada a citopenias com achados morfológicos compatíveis com NMP e SMD apontam para o diagnóstico de uma NMP em fase mais avançada, já com achados mielodisplásicos. De fato, nossa paciente possui critérios diagnósticos para SMD com número de blastos aumentado (5%‒19% na MO ou 2%‒19% em SP). A SMD na infância é uma desordem hematopoiética clonal, com incidência anual de 1‒2 casos por milhão de crianças, sendo 10%‒25% com excesso de blastos. Ela é biologicamente distinta daquela vista em adultos, com patogênege não completamente elucidada. A taxa de progressão para LMA é variável e achados preditores de transformação leucêmica ainda são pouco definidos. O papel das anormalidades genéticas nesse processo tem se mostrado relevante, como ressalta a recente classificação OMS de tumores hematológicos. Na transformação leucêmica, nossa paciente apresentou uma nova alteração genética (mutação no gene FLT3 tipo ITD) – um possível hit associado à leucemogênese. Na atual classificação OMS, a LMA precedida por SMD/NMP é chamada de LMA relacionada a mielodisplasia (LMA-RM). LMA-RM representa até 48% dos casos de LMA em adultos, sendo bem menos frequente na população pediátrica (aproximadamente 21%). O tratamento da LMA-RM pediátrica ainda é um desafio. Os pacientes pediátricos com LMA-RM apresentam pior prognóstico se comparados àqueles com LMA de novo, com maior toxicidade relacionada a terapia e maior risco de recaída. Infelizmente, há poucos dados disponíveis para que haja consenso quanto ao melhor tratamento quimioterápico a ser adotado até o Transplante de Células Tronco Hematopoiéticas (TCTH). Enquanto em pacientes com SMD avançada a quimioterapia intensa não é rotineiramente indicada, nas crianças com LMA-RM ela deve ser considerada, para que cheguem ao TCTH com a contagem de blastos reduzida e com menor chance de recaída. A paciente em questão não apresenta doador de MO compatível até o momento.