
A doença falciforme é um distúrbio hereditário marcado por complicações decorrente da polimerização da hemoglobina, levando a hemólise e vaso-oclusão. Ao contrário da população geral, observou-se que o infarto agudo do miocárdio nestes pacientes era decorrente de trombose não associada à doença aterosclerótica epicárdica.
Relato de casoHomem de 47 anos, admitido no serviço de pronto atendimento com dor torácica em compressão, sem dispneia ou náusea, de evolução há 2 dias. O paciente estava em seguimento no Ambulatório de Hemoglobinopatias do Serviço de Hematologia do HCFMUSP devido a Hemoglobinopatia SC, em programa de sangria terapêutica por crises vaso-oclusivas de repetição. A avaliação laboratorial inicial evidenciou hemoglobina de 10,3g/dl e troponina T ultrassensível de 3ng/ml. O eletrocardiograma apresentava supra desnivelamento do segmento ST em D2, D3 e aVF, além de onda Q em D2, achados compatíveis com infarto agudo de miocárdio evoluído. O paciente recebeu ácido acetil salicílico e enoxaparina e foi encaminhado à cineangiocoronariografia que mostrou trombo em coronária direita, sem evidência de outras lesões obstrutivas. O trombo foi aspirado e enviado para análise histopatológica, que mostrou trombo multicelular. Visando evitar progressão do processo de vaso-oclusão, o paciente foi submetido a eritrocitaférese. Eletroforese após procedimento veio com HbS: 22% e HbC 14%. Em investigação complementar, a ressonância miocárdica mostrou infarto transmural nos segmentos inferosseptal basal e inferior médio basal, associados a focos de obstrução microvascular. A Angiotomografia de coronárias não mostrou lesões. O escore de cálcio total veio zero.
DiscussãoO infarto agudo do miocárdio é uma complicação rara das doenças falciformes. Em uma revisão sistemática de 2008, Pannu e colaboradores levantou 14 casos descritos na literatura em 11 artigos. Entre os pacientes com hemoglobinopatia SC essa complicação é ainda mais rara, com apenas seis casos de infarto agudo do miocárdio descritos nessa população [Wang, 2004, Robard, 2015; Khalique, 2010], sendo nosso relato o quarto com diagnosticado firmado antemortem. Ao contrário do que é observado na população geral, o infarto no paciente com doença falciforme não é associado à presença de placa de ateroma. Nessa população a obstrução costuma ser causada por um trombo multicelular, sem demonstração de lesão vascular prévia. Apesar da falta de estudos que comprovem a eficácia dessa prática, a associação de transfusão de concentrado de hemácias ou eritrocitoaférese ao tratamento convencional do infarto é comum em todos os relatos publicados nos últimos trinta anos [Pannu, 2008].
ConclusãoO caso exposto vem despertar o reconhecimento do infarto agudo do miocárdio associado à Doença Falciforme. Atualmente a escassez de dados nessa área nos encoraja a descrever e avaliar apropriadamente o seguimento desses pacientes.