
É fundamental contextualizar o tratamento da hemofilia à luz dos avanços científicos. No passado, quando o tratamento se limitava ao crioprecipitado, as mães enfrentavam constantemente o temor pela vida de seus filhos. Além da complexidade do tratamento, repleto de possíveis complicações, havia também a questão da distância entre o centro de tratamento e o local de residência da família. Essas mães vivenciavam um cenário de incertezas e ansiedade, onde o medicamento que deveria curar também representava uma ameaça (possíveis intercorrências – reações alérgicas, contaminações, etc). Época permeada por angústias e questionamentos, em que os profissionais de saúde frequentemente enfatizavam “Não faça! ” “Não pode! ”. Lembro-me do relato de uma mãe que relutava em permitir que seu filho com hemofilia, então adolescente, realizasse tratamento dentário, havia perdido familiares devido a hemorragias (naquela época, os eles ainda não tinham o diagnóstico de hemofilia. Avançamos significativamente. Do crioprecipitado para o fator, do fator para o Programa de Dose Domiciliar (DD), e DD para a profilaxia. Hoje, quando as mães nos procuram, geralmente estão, assustadas e angustiadas. Atualmente, o imperativo é “faça! “É possível! ”. Claro, dentro de um plano de tratamento individualizado. Como uma mãe expressou, agora podemos frequentar festas de aniversário com piscina de bolinhas, algo impensável anteriormente. Com a melhoria na qualidade do tratamento, observamos também melhoria na qualidade de vida de todo o núcleo familiar. Viagens podem ser planejadas com mais tranquilidade e segurança. Temos que reconhecer a interconexão entre o bem-estar dos pais e o bem-estar dos filhos. Sendo crucial que mães que cuidam de seus filhos com doença crônica também tenham uma rede de apoio. A conexão com outros pais que vivenciam experiências semelhantes pode ser uma fonte valiosa de apoio emocional e de troca de experiências. Às vezes, não conhecemos os pais das crianças, somente a mãe comparece ao Hemocentro. E muitas vezes testemunhamos histórias de separação conjugal. Isso resulta na mãe assumindo a responsabilidade pelas inúmeras idas e vindas aos médicos, clínicas e hospitais. Essa responsabilidade acaba exigindo tempo, energia e recursos físicos e emocionais consideráveis por parte da mãe. A culpa (muitas vezes presente) parece fluir em ambas as direções, sendo uma via de mão dupla: a mãe se culpando por não ter gerado um filho “perfeito” e os filhos, por sua vez, demonstrando culpa ao entenderem o trabalho exigido pelo tratamento, com sua mãe dedicando grande atenção a eles. Observamos, algumas vezes, uma superproteção a esses filhos hemofílicos, às vezes em detrimento dos demais filhos. Isso pode desencadear ciúmes e rivalidades, tanto explícitas quanto veladas, entre os irmãos. Durante um atendimento, uma mãe expressou seu enorme sofrimento ao verbalizar: “... gostaria que todos os meus filhos fossem hemofílicos, assim não haveria brigas”. Evidenciando o desgaste em tentar equilibrar a atenção entre seus filhos. É fundamental disponibilizar atendimento psicológico para pessoas com hemofilia e seus familiares. O psicólogo, por meio de uma escuta qualificada, procura compreender o sofrimento decorrente do tratamento contínuo que acompanha essa condição.