
Paciente 29 anos, parda, sem comorbidades conhecidas, G1 P0 A0, admitida no setor de emergência em período expulsivo de trabalho de parto com 33 semanas de gestação. Período gestacional e parto transvaginal prematuro sem intercorrências com RN encaminhado para UTI apenas para ganho ponderal. Exames laboratoriais no pós-parto imediato com anemia normocítica (Hb 6,5 g/dL; VCM 95 fL), reticulocitose (7%), trombocitopenia grave (22.000/mm3), LDH aumentada (1.724 UI/L), bilirrubina indireta 2,3 mg/dL, haptoglobina <7, creatinina 0,5 e INR 1,1. Série branca sem alterações. À hematoscopia: numerosos esquizócitos. Transaminases e USG abdominal sem alterações. Proteinúria de 24h: 2,9 g. Paciente seguiu sem queixas e estável hemodinamicamente. Descartados os principais diagnósticos que cursam com microangiopatia trombótica (MAT) na gestação, a suspeita de Púrpura Trombocitopênica Trombótica (PTT) foi aventada (PLASMIC score: 6 pontos; French score: 2 pontos). Foi, então, realizada pesquisa de atividade da enzima ADAMTS13 no oitavo dia após o parto, com resultado 0,02 UI/mL, e com a pesquisa do inibidor negativa. Apesar do hemograma e dos marcadores de hemólise apresentarem melhora evolutiva espontânea, diante da potencial gravidade do diagnóstico, a terapia com transfusão de plasma fresco foi realizada em sessão única, mantendo a evolução clínica e laboratorial favorável nos dias subsequentes. Paciente recebeu alta após 15 dias da internação, para seguimento ambulatorial. Realizou nova pesquisa de ADAMTS13 após 1 mês do parto, com atividade de 0,04 UI/Ml, além de Hb 10,8 g/dL, plaquetas 115 mil/mm3, haptoglobina<3, LDH 287 UI/L e reticulócitos 4,7%, confirmando atividade de doença. Diante disso, mesmo seguindo a paciente assintomática, foi instituída terapia com infusão de plasma ambulatorial até alcançar remissão hematológica e a paciente seguirá em acompanhamento pela PTT congênita.
DiscussãoO diagnóstico diferencial de MATs no terceiro trimestre da gestação e puerpério é extenso e deve aliar dados clínicos e laboratoriais para a identificação da correta etiologia, resultando no tratamento eficaz. Afastados eclâmpsia, síndrome HELLP, CIVD por descolamento prematuro de placenta e síndrome hemolítica urêmica atípica, ficamos com o diagnóstico de PTT como o mais provável. A forma adquirida, com presença de inibidor anti-ADAMTS13, ocorre em mais de 90% dos casos do adulto. No entanto, a possibilidade de tratar-se da forma congênita da doença, conhecida como síndrome de Upshaw-Schulman, mesmo que nunca antes clinicamente manifesta, deve ser lembrada. Isso porque, nos casos em que a deficiência enzimática é leve ou moderada, há necessidade de elevação dos multímeros de von Willebrand circulantes, como ocorre ao término da gestação, momento mais comum do aparecimento de sintomas, para que surja o desequilíbrio levando às manifestações clínico-laboratoriais da doença. A diferenciação entre as formas da doença é fundamental, pois o manejo é completamente distinto. O caso relatado ilustra a forma de apresentação mais comum dessa raríssima doença, demonstra a importância do acesso à dosagem da atividade da enzima ADAMTS13 ao diagnóstico e no acompanhamento, bem como, a pesquisa de seu inibidor para o diagnóstico diferencial e serve de alerta aos clínicos e hematologistas para que atentem a essa possibilidade diagnóstica.