
A hemofilia A (HA) é uma doença hemorrágica caracterizada pela ocorrência de sangramentos, principalmente articulares e musculares. Embora esses pacientes sejam considerados relativamente protegidos de eventos trombóticos, existem relatos de trombose venosa, associada a fatores de risco como pós-operatório ou com reposição de fator.
Relato de casoHomem, 22 anos, em seguimento no Hemocentro de Ribeirão Preto com diagnóstico de HA grave sem inibidor em profilaxia com fator VIII recombinante (FVIIIR). Compareceu para avaliação em março de 2022 com queixa de dor e edema difuso na perna direita iniciados há 10 dias, sem história de trauma associado. No início do quadro clínico, o paciente não procurou atendimento médico e realizou reposição de FVIIIR diariamente, com dose superior à habitual (elevação de FVIII em 50%), conforme julgamento pessoal e sem definição diagnóstica. Como não apresentou melhora clínica, no décimo primeiro dia de evolução, procurou atendimento e, após avaliação clínica, foi aventada a hipótese de hematoma muscular no compartimento posterior da perna direita, sendo optado pela manutenção do esquema de reposição diária, repouso muscular e reavaliação em 72 horas. Na reavaliação, paciente mantinha quadro clínico, realizada Tomografia Computadorizada, que não identificou sangramento muscular. Nesse contexto, foi optado por realização de Doppler Venoso de membro inferior direito, que evidenciou tromboflebite de veia safena parva medindo cerca de 10 cm, estendendo-se do terço proximal até o terço médio da perna, sem acometer o sistema venoso profundo. O hemograma não evidenciava plaquetopenia. Como potencial fator de risco adicional, o paciente referiu ter recebido a 3°dose da vacina para COVID19 (AstraZeneca®) cerca de 3 semanas antes do início dos sintomas. Por se tratar de tromboflebite extensa, com repercussões clínicas, caracterizadas por comprometimento funcional do membro, o paciente teria indicação de anticoagulação terapêutica. Porém, considerando contexto clínico e doença de base, optamos por manter observação clínica, repouso, medidas locais, redução da reposição de FVIIIR e repetição do Doppler precocemente. O exame de controle com intervalo de 4 semanas mostrou recanalização completa da veia safena parva, bem como houve remissão completa dos sintomas e recuperação funcional do membro acometido.
DiscussãoApesar de ser uma complicação rara, deve ser considerada, especialmente em casos que apresentem refratariedade clínica, como a situação apresentada. Particularmente nesse caso, há de se considerar o fato do paciente ter recebido a vacina para COVID19 anteriormente ao quadro, cuja associação com quadros de trombose e plaquetopenia vem sendo descrito na população em geral, porém os dados são escassos em paciente com coagulopatias. Ademais, estes pacientes pela “anticoagulação natural”, inerente à patologia de base, podem não apresentar quadros tão floridos e graves quanto os descritos na literatura. Não há como se definir com precisão a contribuição da reposição de fator iniciada pelo paciente em regime domiciliar (doses maiores e de forma mais intensa) no desenvolvimento do quadro atual.
ConclusãoEventos trombóticos nessa população, apesar de raros, podem ocorrer, e, a decisão quanto a anticoagulação é desafiadora. É importante avaliar os potenciais fatores de risco associados como traumas, cirurgias e, no contexto atual, a associação com a vacina para COVID19.