
A doença falciforme (DF) é a doença hereditária monogênica mais comum no Brasil, sendo considerada um problema de saúde pública. A história natural da doença é marcada por um amplo espectro de complicações que levam a múltiplas disfunções orgânicas. Algumas dessas, comprometem diretamente a função de órgãos vitais, por exemplo, a insuficiência renal. A fisiopatologia da nefropatia falciforme ainda não é completamente compreendida, porém, são reconhecidas diversas anormalidades caracterizadas por hiperfiltração, hipertensão glomerular, lesão de isquemia-reperfusão, estresse oxidativo, diminuição da biodisponibilidade de óxido nítrico (NO) e disfunção endotelial.
Relato de casoTrata-se de paciente masculino, de 18 anos, em acompanhamento no Hemocentro de Ribeirão Preto desde o primeiro ano de vida, quando foi diagnosticado com Anemia Falciforme. Aos 2 anos, iniciou protocolo para rastreio de doença cerebrovascular associada à hemoglobinopatia. Realizado Doppler Transcraniano, que demonstrou alteração de fluxo sanguíneo e, posteriormente, confirmada estenose de segmento M2 à esquerda com Angioressonância de Encéfalo. Desde então, paciente iniciou regime de transfusões crônicas e hidroxiureia (HU) para profilaxia primária de Acidente Vascular Cerebral. Durante o acompanhamento, não foi possível otimização na dose de HU, uma vez que, mesmo em 20 mg/kg/dia, evoluiu com toxicidade hematológica (neutropenia grau 4 e anemia grau 3), sendo necessárias múltiplas interrupções da medicação. Também não era possível realização de sangrias terapêuticas devido perfil hemolítico grave e níveis basais de hemoglobina entre 7-8 g/dL. Em 2011, foi documentada proteinúria (grau 2) nos exames laboratoriais. Iniciado tratamento profilático com inibidor da enzima conversora de angiotensina (iECA), o que levou à remissão da proteinúria para grau 1. Em 2016, foi documentado novo aumento da proteinúria, o que motivou a otimização da dose do iECA e acompanhamento conjunto com a nefrologia. Durante todo esse período, não houve alteração dos níveis séricos de ureia, creatinina, bem como da taxa de filtração glomerular estimada (eTFG). O ultrassom renal revelava aumento difuso da ecogenicidade do parênquima renal bilateralmente. Já em junho de 2019, houve redução da eTFG e surgimento de proteinúria maciça (grau 4), porém, sem critérios para síndrome nefrótica. Otimizado novamente a dose de iECA conforme tolerância clínica. Nesse contexto, foi indicado biópsia renal, laudo anatomopatológico identificou Glomeruloesclerose Segmentar e Focal em processo de cronificação. A despeito de regime de transfusões crônicas, uso irregular de hidroxiureia, uso de iECA e manejo dos fatores de riscos modificáveis, paciente evoluiu com doença renal terminal em março de 2022.
DiscussãoO rastreamento e tratamento precoces da nefropatia falciforme são primordiais para evitar a progressão para doença renal terminal. Os exames laboratoriais de avaliação padrão da função renal são alterados tardiamente nessa população, portanto, a utilização de novos biomarcadores que predizem o início precoce do acometimento renal é necessária. Atualmente, a cistatina C é o padrão ouro para obter a eTFG, porém, ainda pouco disponível na prática clínica.
ConclusãoDada a alta prevalência de nefropatia falciforme e sua associação com morbidade e mortalidade relacionadas à DF, estudos adicionais são necessários para elucidar adequadamente sua fisiopatologia, história natural e tratamento.