
Relatar um caso onde a adesão ao tratamento foi otimizada a partir do trabalho psicológico, abordando a dimensão imaginária do paciente.
Relato do casoPaciente com 15 anos, HAG, único hemofílico numa prole de 4. Uso irregular de FVIII, dose domiciliar. Arredio, em evasão escolar, trabalha como servente de pedreiro; busca o Serviço após lesão – peça de porcelanato caiu no pé. Na triagem psicológica, revela quase nenhuma compreensão sobre a doença: “é de família e é muito grave”. Cita o avô e o primo, ambos hemofílicos com sequelas graves. Paciente sonhava jogar futebol profissionalmente, e treinou durante algum tempo, mantendo a doença incógnita. Relata comportamentos de risco (bicicleta e motocicleta). Se diz desmotivado, sem perspectivas. A mãe, também arredia, questiona suas responsabilidades, já que o paciente “se acha adulto”o suficiente para assumir riscos. Nas sessões da Psicologia, vieram à tona fantasias sobre a hemofilia: “vou viver até no máximo 30 anos”; “não posso fazer nada do que gosto”. Também verbaliza frustração pela doença; questiona ser o único hemofílico na família nuclear; ressente-se por “querer ser alguém na vida”, sentindo que não pode, enquanto seus irmãos hígidos não demonstram tais desejos. Em seu imaginário, a doença lhe traz total impossibilidade. Estas e outras fantasias foram centrais no trabalho psicológico. Numa delas acreditava que todas as dores, fraquezas e limitações de seu corpo se deviam ao quadro, e que se não fosse hemofílico poderia jogar futebol por várias horas seguidas sem sentir dor, fome ou cansaço. Foi trabalhada a compreensão de que limites – fisiológicos inclusive, são próprios da natureza humana. E mais, que limites existem para todos, mas não invalidam desejos. Há possibilidades. Atrelado a este trabalho, realizou-se Psicoeducação. Paralelamente, a Enfermagem conduziu o retreinamento da técnica de infusão. Além disso, foi ponderado junto a ambos, paciente e mãe, possibilidades seguras de equalizar autocuidado e cuidados maternos, responsabilizando-os mutuamente pela saúde do paciente e respeitando a ampliação gradual do seu nível de maturidade. Ao longo das semanas, o paciente se torna comunicativo e assertivo; refere estar mais atento aos movimentos cotidianos, para evitar lesões. Passa a falar de realizações, não mais apenas limitações: voltou à escola, a jogar bola de forma recreativa, a se sentir acolhido pelos pares. Compôs músicas narrando sua história de vida; cogita perspectivas de futuro (estudo/trabalho/família); se diz mais cuidadoso consigo e responsável nas atitudes cotidianas. A mãe, por sua vez, refere o filho mais apropriado de si, responsável e com melhor qualidade de vida. A profilaxia passa a ser sistemática. Pouco depois, um percalço: o irmão envolveu-se num imbróglio; o paciente, na tentativa de apartar a briga, foi ferido à faca no tórax. Após a alta hospitalar, retorna declarando que se não estivesse em profilaxia teria morrido. Trabalha na Psicologia o confronto brutal com sua própria finitude; passa a valorizar mais sua saúde e suas possibilidades diante da vida.
ConclusõesTrabalhando as fantasias que preenchiam as lacunas de compreensão sobre o quadro, o paciente pôde operar de modo mais eficaz com a realidade, e assim ampliar seus recursos de enfrentamento do tratamento, o que repercutiu em outras esferas de sua vida.