O sistema endocanabinóide atua fundamentalmente como regulador da homeostase e no controle de inúmeras funções orgânicas. Seus diversos componentes são expressos em virtualmente todos os tecidos do corpo humano e a modulação de sua ação através do uso medicinal da Cannabis tem sido explorada em uma grande variedade de situações clínicas. Considerando o caráter multissistêmico das Doenças Falciformes (DF), o objetivo deste trabalho foi compilar o atual conhecimento científico acerca da expressão e ação dos diversos componentes do sistema endocanabinoide e seu intercruzamento com a fisiopatologia das complicações crônicas da doença, visando trazer hipóteses sobre seu potencial terapêutico em cada uma delas.

Revisão narrativa da literatura, realizada na base de dados MEDLINE/Pubmed, utilizando termos: “Sickle Cell Disease”, “Hemolysis”, “Vaso Occlusive Crisis”, “Chronic Pain”, “Neuropathic Pain”, “Endocannabinoid System”, “CB1”, “CB2”, “Anandamide”, “2-AG”, “Cannabis”, “Medical Cannabis”, “THC”, “CBD”, “Hemopressin”. Foram avaliados artigos publicados até julho de 2023, além da lista de referências dos artigos selecionados, sendo então incorporadas as publicações de interesse dos pesquisadores. No caso de mais de uma fonte para o mesmo tópico, foram priorizadas as metanálises ou estudos randomizados mais recentes.

Foram selecionados para avaliação 75 artigos publicados entre 2002 e 2023, que incluíram 18 artigos já trazendo resultados de análises específicas do uso da Cannabis e seu impacto no tratamento das DF (relatos de casos, estudos populacionais ou ensaios clínicos). Há evidências incipientes de benefício terapêutico no uso tópico para cicatrização de úlceras de membros, mas com resultados conflitantes quanto a sua eficácia no controle da dor e diminuição na necessidade de opioides, além de associação com maior número de crises e hospitalizações quando ocorre uso não certificado ou sem supervisão médica. Considerando os resultados relatados para outras condições clínicas onde a cannabis medicinal foi melhor estudada, pode haver potenciais benefícios quanto ao retardamento da lesão cerebral e déficit cognitivo, mitigação dos quadros de dor crônica neuropática e dependência de opioides, além do controle de sintomas neuropsiquiátricos que são frequentes complicadores nesse grupo de doenças.

O manejo das complicações das Doenças Falciformes é um grande desafio médico, principalmente em relação a repercussões crônicas, como dor refratária, dependência de opioides, úlceras de pernas e distúrbios neuropsiquiátricos. Diante da escassez de possibilidades no atual arsenal terapêutico da doença, o uso de medicações à base de cannabis pode ser uma estratégia promissora.

Considerando a complexa fisiopatologia das DF e a ampla distribuição orgânica dos elementos do sistema endocanabinoide, esta revisão traz especulações sobre suas várias potenciais aplicações, mas é urgente que mais estudos clínicos sejam desenvolvidos para resolução de questões quanto a segurança e eficácia do seu uso nesse grupo de doenças.