O sistema endocanabinoide consiste em uma complexa rede de sinalização celular primariamente responsável por manutenção da homeostase e regulação de processos fisiológicos e, por isso, tem sido alvo de interesse pelo potencial terapêutico em diversas condições patológicas. Um de seus receptores, CB2, é preferencialmente expresso nos tecidos periféricos, tendo sido demonstrado em todas as populações de leucócitos humanos. Portanto, o objetivo deste trabalho foi avaliar o efeito do tratamento com Cannabis medicinal sobre as subpopulações de leucócitos em paciente portadora de Doença Falciforme (DF).

Os dados clínicos e sociodemográficos foram compilados através de análise retrospectiva de prontuário médico, e a avaliação de subtipos de leucócitos foi realizada por citometria de fluxo. Para isso, 4 mL de sangue periférico foram coletados em tubo EDTA antes do início do tratamento e após 15 e 21 dias de tratamento. A imunofenotipagem foi realizada nos 3 períodos utilizando-se anticorpos monoclonais conjugados à fluorescência: CD3, CD4, CD8, CD14, CD16, CD19, CD25, CD45, CD56, CD66b, CD68, CD80, CD163, FoxP3, HLA-DR, IFN-y, IL-4, IL-10, Granzima e Perforina. As amostras foram adquiridas no citômetro de fluxo CytoFLEX - Beckman Coulter e analisadas no FlowJo™.

Paciente do sexo feminino, 42 anos, em seguimento por Sβ-talassemia zero, tendo como importante complicação da doença múltiplos microinfartos ósseos em coluna lombar levando a quadro de dor crônica incapacitante. Em uso de Hidroxiureia (20 mg/kg/dia), Gabapentina 1200 mg/dia, com necessidade de doses diárias de Dipirona e Tramal; faz seguimento com fisioterapia tendo sido avaliada por ortopedista sem indicação cirúrgica. Diante do quadro de dor crônica refratária, iniciado tratamento complementar com Cannabis Medicinal: 25 mg de canabidiol, divididos em duas doses diárias (óleo sublingual 50 mg/mL, 0,25 mL 2x ao dia), mais 5 mg de THC (óleo sublingual 50 mg/mL, 0,05 mL 2x ao dia). Após 21 dias de tratamento, além da importante melhora no quadro de dor, a avaliação das subpopulações leucocitárias por citometria de fluxo evidenciou: i) aumento da porcentagem de linfócitos T CD4+ e diminuição de T CD8+, ii) aumento da porcentagem de Tregs FoxP3+, iii) diminuição no conteúdo de granzima em linfócitos T CD8+, iv) diminuição progressiva na porcentagem de neutrófilos e v) polarização macrofágica com tendência ao fenótipo M2.

O tratamento com cannabis medicinal neste caso levou a importantes alterações quantitativas nos elementos do sistema imune, sugerindo uma importante mudança para um perfil anti-inflamatório (supressão de neutrófilos e aumento no número de Tregs FoxP3+) e de reparo tecidual (com menor produção de granzima, aumento da relação CD4/CD8 e polarização macrofágica M2). O perfil observado antes do uso da medicação era característico das DF e foi parcialmente revertido com apenas poucos dias de tratamento.

Estes resultados sugerem a modulação de algumas subpopulações de leucócitos com o uso de Cannabis Medicinal em paciente com Doença Falciforme, revertendo o ambiente inflamatório característico desse grupo de doenças e evidenciando um potencial terapêutico que deve ser analisado em maior profundidade em ensaios clínicos.