A coleta de sangue total é etapa essencial na hemoterapia e sua execução segura impacta diretamente a qualidade dos hemocomponentes e a segurança do doador. Intercorrências nesse processo comprometem a eficiência, causam desconforto, reduzem a taxa de retorno, afetam estoques e elevam custos. Apesar de reações adversas serem amplamente estudadas, há poucos trabalhos sobre intercorrências técnicas. Em 2024, o Brasil registrou mais de 3,3 milhões de doações (Ministério da Saúde), reforçando a importância do monitoramento sistemático, especialmente em serviços públicos com alto volume, perfil heterogêneo de doadores e restrições estruturais.

Analisar a incidência e a distribuição das intercorrências técnicas relacionadas à punção venosa registradas durante a coleta de sangue total no Hemocentro/Unicamp, de janeiro a dezembro de 2024.

Estudo observacional retrospectivo com base em registros da equipe de enfermagem, obtidos por formulário físico (FRIPC) e sistema informatizado. Incluíram-se exclusivamente intercorrências técnicas relacionadas à punção venosa: dupla punção (fluxo lento/interrompido com segunda tentativa autorizada), interrupção por tempo limite e/ou volume < 405 mL, acesso venoso difícil (até duas tentativas sem sucesso), reações locais (dor, hematoma, punção arterial) e eventos relacionados a materiais. Os dados foram consolidados em planilhas eletrônicas e analisados em números absolutos, relativos, taxas por 1.000 procedimentos e IC95%.

Foram analisados 69.367 procedimentos, dos quais 2.028 apresentaram intercorrências técnicas (2,92%; IC95% 2,80-3,05). A dupla punção foi a mais frequente (51,3%; IC95% 49,1-53,5), com 87,5% (IC95% 85,4-89,4) concluídas com volume adequado. Interrupção por tempo/volume < 405 mL ocorreu em 36,2% (IC95% 34,1-38,3), seguida de acesso venoso difícil (9,4%; IC95% 8,2-10,7), reações locais (2,8%; IC95% 2,2-3,6) e eventos relacionados a materiais (0,14%; IC95% 0,05-0,42). O descarte por volume < 300 mL foi de 1,01% (IC95% 0,94-1,09), equivalente a 10,1/1.000 coletas. As intercorrências mais comuns estiveram associadas a alterações no fluxo venoso, reforçando a importância da avaliação prévia do acesso vascular e execução técnica adequada.

A predominância de eventos relacionados ao fluxo evidencia a necessidade de avaliação criteriosa do acesso vascular e execução técnica precisa. O monitoramento dessas falhas constitui indicador relevante de qualidade, orientando ações corretivas, treinamentos e estratégias específicas para grupos com maior risco. A redução desses eventos aprimora a experiência do doador, assegura suprimento seguro de hemocomponentes e minimiza perdas. A capacitação contínua e a revisão periódica de protocolos são medidas essenciais para prevenção. A escassez de estudos em serviços públicos brasileiros limita comparações, o que reforça a relevância desta análise. O acompanhamento sistemático permite identificar fragilidades, direcionar intervenções e promover melhorias com impacto direto na segurança do doador, na eficiência operacional e na sustentabilidade dos serviços de hemoterapia. Além disso, os dados já forneceram subsídios para a otimização dos protocolos internos e fundamentam futuras pesquisas sobre fatores preditores de intercorrências técnicas, contribuindo para a melhoria contínua da assistência hemoterápica.