A anemia falciforme (AF) é uma doença genética caracterizada por inflamação crônica, vaso-oclusão e disfunção endotelial, levando a lesões isquêmicas em múltiplos órgãos. Estudos recentes têm sugerido que o intestino pode desempenhar um papel relevante na fisiopatologia da doença, por meio da perda da integridade da barreira intestinal, disbiose, translocação microbiana e ativação imune sistêmica.

Considerando os efeitos vasculares e anti-inflamatórios da hidroxiureia (HU), este estudo teve como objetivo avaliar o impacto do tratamento com HU sobre a perfusão intestinal e a permeabilidade em um modelo murino de anemia falciforme.

Foram utilizados camundongos transgênicos da linhagem Townes, genótipos AS (controle) e SS (AF), com 4-5 meses de idade. A permeabilidade intestinal foi avaliada por administração oral de FITC-dextran (4 kDa), seguida de quantificação da fluorescência no plasma. A perfusão nas alças intestinais e vasos mesentéricos foi medida por imagem de contraste por padrão de speckle a laser em tempo real (PeriCam PSI System®). Um subgrupo de camundongos Townes SS foi tratado com HU (50 mg/kg/dia por 6 semanas) ou não (controle – água), para avaliar seus efeitos sobre a permeabilidade intestinal, perfusão mesentérica, marcadores inflamatórios sistêmicos e de dano intestinal.

Camundongos Townes SS apresentaram níveis aumentados de reticulócitos, agregados neutrófilo-plaqueta e marcadores inflamatórios sistêmicos, tais como a Proteína ligadora de lipopolissacarídeo (LBP), Interleucina (IL)-17 e Calprotectina, em comparação aos controles Townes AS. O tratamento com hidroxiureia não aumentou significativamente os níveis de hemoglobina fetal nem reduziu significantemente a proporção de neutrófilos senescentes, mas reduziu a contagem de reticulócitos e a porcentagem de agregados neutrófilo-plaqueta, sugerindo melhora da anemia e efeito anti-inflamatório. A permeabilidade intestinal, avaliada por FITC-dextran, aumentada nos camundongos SS, foi significativamente reduzida com a HU, indicando melhora da integridade da barreira intestinal. O tratamento com HU também melhorou a perfusão mesentérica, evidenciada por aumento do fluxo sanguíneo nas alças intestinais e vasos mesentéricos. Os níveis séricos da Proteína de ligação a ácidos graxos intestinais (IFABP)-1, elevados nos camundongos Townes SS, foram significativamente reduzidos após o tratamento com HU, assim como os níveis de calprotectina e zonulina fecal, apresentaram tendência de queda. O tratamento com HU aumentou os níveis de IL-17, citocina que também contribui para a manutenção da barreira epitelial e modulação da microbiota intestinal.

Os dados obtidos reforçam que a hidroxiureia exerce efeitos benéficos além da sua ação hematológica, apresentando um potencial efeito protetor sobre o intestino de camundongos com anemia falciforme. A redução da permeabilidade intestinal observada com o tratamento pode representar um importante mecanismo na redução da translocação microbiana e da inflamação sistêmica. Além disso, a melhora na perfusão mesentérica sugere que a HU também pode melhorar a isquemia local, promovendo um ambiente intestinal mais estável e funcional. Esses achados indicam que a preservação da integridade da barreira intestinal pode ser um alvo terapêutico relevante na abordagem integrada da AF. Suporte Financeiro: FAPESP