
Narrar um caso de tromboses esplâncnicas que levaram ao diagnóstico de hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) em um paciente sem evidências laboratoriais de hemólise.
Relato de casoTrata-se de um homem de 63 anos, com diagnóstico de lúpus sistêmico (LES) desde 2017, em uso de hidroxicloroquina e sem sinais de atividade de doença. Em 2021, 3 dias após receber a vacina Covishield®, apresentou prostração, dor abdominal e icterícia. Foi diagnosticado com trombose de veias hepáticas e síndrome de Budd-Chiari, e tratado com rivaroxabana após a alta hospitalar. Em 2023, ao ser admitido em nosso serviço, exibia ascite refratária e os exames de imagem mostravam trombose de veias mesentérica e porta com transformação cavernomatosa, varizes de esôfago, esplenomegalia e alterações hepáticas perfusionais. Exames laboratoriais: Hb 12,9 g/dL, leucometria 7650/mm3, plaquetas 116.000/mm3, reticulócitos 90.000/mm3, creatinina 1 mg/dL, LDH 192 (120-246 U/L), bilirrubina indireta 0,6 mg/dL, haptoglobina 105 (40-280 mg/dL), TGO 30 U/L, TGP 48 U/L, FA 423 (27-100 U/L), GGT 367 (7-40 U/L) e Coombs direto negativo. Quando diretamente questionado, o paciente referia episódios de disfagia, dor torácica inespecífica, fadiga e disfunção erétil; negava transfusões. A pesquisa de trombofilias hereditárias e síndrome antifosfolípide resultou negativa. A citometria de fluxo não evidenciou perda da expressão do antígeno CD59 nas hemácias, mas perda total do CD24 em 93,3% dos neutrófilos e do CD14 em 87,5% dos monócitos. O exame foi repetido em outro laboratório e manteve a discrepância na mensuração dos clones entre as linhagens (HPN tipo II em 8,3% das hemácias e tipo III em 0,8%; perda de CD157 e FLAER em 92% dos neutrófilos e em 89,9% dos monócitos), confirmando o diagnóstico de HPN. O paciente mantém uso de varfarina, paracenteses semanais e aguarda a realização de shunt intra-hepático para tratamento da hipertensão portal e a liberação de eculizumab pelo SUS.
DiscussãoA HPN é uma rara condição hematológica que cursa com hemólise e eventos trombóticos, que são a ocorrência inicial em cerca de 10% dos pacientes. A tendência trombótica é provavelmente multifatorial, incluindo a hemólise intravascular e maior ativação das plaquetas GPI-deficientes, mais susceptíveis a ataques do sistema complemento. No caso descrito, tanto o LES quanto a vacinação podem ter atuado como fatores ativadores do complemento. Por muito tempo acreditou-se que pacientes com sintomas hemolíticos clássicos eram os mais propensos a tromboses. Essa premissa foi utilizada na elaboração do protocolo clínico do Ministério da Saúde para tratamento da HPN de alta atividade. Entretanto, estudos mais recentes têm mostrado que a presença de clones > 50% em granulócitos são fortes preditores de trombose, mesmo com baixos níveis de hemólise, mas ainda não existem diretrizes para o uso de inibidores de complemento nesse subconjunto de pacientes a despeito da alta morbimortalidade associada aos eventos trombóticos na HPN.
ConclusãoA hemólise intravascular pode estar associada a eventos trombóticos, mas fatores plaquetários e leucocitários parecem ter um papel mais importante que o previamente reconhecido no mecanismo da trombose na HPN. Estudos são necessários para avaliar as indicações dos inibidores do complemento em pacientes com grandes clones de HPN e poucas evidências de hemólise.