
A remissão espontânea de leucemia mieloide aguda é um evento muito raro, e suas descrições na literatura médica geralmente envolvem um evento infeccioso grave. Mais recentemente, a COVID-19 também foi descrita como um dos fatores associados a tal fenômeno, e a hipótese mais aceita para o mesmo é de que há uma hiperativação imune que também apresenta efeito antitumoral.
Relato de casoPaciente feminina, de 54 anos, foi admitida no Hospital Brigadeiro com história de alteração de nível de consciência e lesão em pododáctilo direito que motivou a procura do pronto socorro. No hemograma da admissão, apresentava hemoglobina 8,2 g/dL VCM 87, plaquetometria 11.000/mm3, leucócitos 99560 com 88% de células de médio a grande tamanho, alta relação núcleo citoplasma nucléolos evidentes e presença frequente de bastonete de Auer. À imunofenotipagem de sangue periférico,22,4% destas células revelaram marcação CD13, CD15++, CD33++/+++, CD34 par, CD38+++, CD64+, CD71+, CD117, CD123+, HLA-DR, MPO par, além de 18,6% de monócitos maduros, com diagnóstico de leucemia mieloide aguda. Foi colhido teste rápido para COVID-19 antes da internação, com resultado positivo. Nos 3 dias que se seguiram, a paciente evoluiu com desconforto respiratório, taquipneia, e a tomografia de tórax revelou ainda broncopneumonia sobreposta à COVID-19, o que resultou em intubação orotraqueal por insuficiência respiratória. Durante a intubação, a paciente evoluiu com parada cardiorrespiratória em atividade elétrica sem pulso, com retorno à circulação espontânea após 10 minutos. Dada a gravidade do quadro, foi optado por não iniciar indução quimioterápica. Ao longo da internação em UTI, a paciente fez uso de piperacilina tazobactam com vancomicina nos primeiro 7 dias de internação, teve Pseudomonas aeruginosa multissensível isolada de aspirado traqueal, e recebeu meropenem e teicoplanina por novo evento de choque séptico, por 7 dias. Sua internação em UTI durou 41 dias, contudo, ao longo dos primeiros 30 dias de internação houve clareamento de blastos em sangue periférico, e parâmetros como hemoglobina e plaquetometria também evoluíram com melhora. Ao final do 42° dia, quando recebeu alta da UTI para a enfermaria, foi feita avaliação medular, quel não revelou blastos com as características imunofenotípicas previamente descritas. A paciente se encontra atualmente internada e com remissão citomorfológica e sem doença residual mínima pela imunofenotipagem. Não foi administrada qualquer terapia antineoplásica, somente hidroxiureia para fins de citorredução, nos primeiros 7 dias do quadro.
DiscussãoO caso evidencia uma rara e ainda não compreendida remissão de leucemia mieloide aguda após infecção por COVID-19 e complicações infecciosas bacterianas graves. Casos semelhantes já foram descritos em sepse grave e COVID-19 isoladamente, mas a evolução natural do quadro envolve a recaída da doença após alguns meses do quadro agudo. A terapia antineoplásica, por sua vez, é indispensável para a remissão sustentada. A explicação mais aceita para o fenômeno é de que um mecanismo imunológico ativado e produção excessiva de citocinas pró-inflamatórias, sobretudo na COVID-19, destruiria as células neoplásicas, que poderiam inclusive ser infectadas pelo vírus.
ConclusãoApesar de o mecanismo exato da remissão ser desconhecido, o caso apresentado reforça o papel da imunidade do indivíduo no tratamento antineoplásico e justifica a imersão em mais estudos envolvendo imunoterapia para a leucemia mieloide aguda.