
A Anemia de Fanconi (AF) é uma doença genética autossômica recessiva rara, caracterizada por anomalias congênitas, falência medular progressiva e alta predisposição a neoplasias. Falhas no reparo do DNA levam à instabilidade cromossômica e maior suscetibilidade a agentes mutagênicos. Na AF, defeitos nos mecanismos de reparo do DNA causam a incorreta correção dos danos ao material genético, resultando na acumulação de erros e mutações celulares. Essas mutações podem ativar oncogenes ou desativar genes supressores de tumor, aumentando o risco de transformação maligna. O carcinoma espinocelular (CEC) é o tumor sólido mais prevalente, sendo a cavidade oral o local mais acometido devido à exposição a agentes mutagênicos e virais e à alta taxa de renovação celular. O acompanhamento médico e odontológico é crucial para a detecção precoce de lesões suspeitas e para o tratamento adequado em caso de câncer. A pandemia de COVID-19 agravou significativamente o acompanhamento desses pacientes. Muitos serviços e hospitais limitaram atendimentos eletivos e preventivos para focar no tratamento de pacientes infectados, além da problemática de recursos hospitalares limitados e equipes reduzidas. Clínicas, especialmente as odontológicas, também permaneceram fechadas por um período, dificultando o acesso a cuidados preventivos e acompanhamento. Ademais, pacientes adiaram ou evitaram consultas devido à dificuldade de locomoção para centros de referência e ao medo de contrair o vírus. Este trabalho discute o impacto da pandemia no tratamento e prognóstico de uma paciente com AF diagnosticada com CEC oral. A paciente, de 23 anos, submetida a transplante de células-tronco hematopoiéticas aos 8 anos, compareceu ao serviço de odontologia de um hospital terciário de referência após três anos da última consulta, queixando-se de ulceração na mucosa jugal esquerda há 2 meses. O exame físico revelou uma lesão exofítica ulcerada de 3cm, com bordos endurecidos e sintomatologia associada. Citologia esfoliativa e biópsia confirmaram o diagnóstico de CEC. Após uma semana, todos os exames pré-operatórios foram realizados, sendo que um linfonodo submandibular positivo foi detectado. A cirurgia foi adiada três vezes devido ao esgotamento de leitos na UTI por COVID-19. Durante esse período, a lesão aumentou, tornando as margens cirúrgicas mais amplas. A cirurgia ocorreu 50 dias após a consulta inicial. Durante a recuperação, a paciente estava sob investigação para COVID-19 e 10 dias após a cirurgia apresentou paradas cardiorrespiratórias seguidas de morte encefálica. O caso ilustra como a pandemia interfere no diagnóstico, tratamento e prognóstico do câncer, especialmente em pacientes com AF. Destaca a necessidade de estarmos preparados para crises sanitárias globais, implementando estratégias robustas de resposta e continuidade de acompanhamento regular. A adoção e o fortalecimento de ferramentas como teleconsultas pode oferecer uma alternativa eficaz para manter o contato e monitoramento dos pacientes quando os recursos presenciais são limitados ou quando o acesso é restrito. Integrar essas práticas melhora a gestão de saúde durante pandemias e reduz a sobrecarga dos serviços de saúde, garantindo atendimento adequado e em tempo hábil. Investir em tecnologia, otimizar os processos de triagem e criar protocolos que permitam flexibilidade no atendimento são passos essenciais para assegurar que o sistema de saúde esteja preparado para enfrentar futuras crises de forma mais eficaz.